1 Brasileiro


São Sebastião

Um gemido, um sussurro breve. Enfim, o silêncio paira no ar como as brumas de fumaça que fazem lagrimejar os olhos. A vastidão do horizonte nos faz pensar na distância, na saudade da alma e do coração. Às vezes não é bom lembrar de coisas que foram esquecidas. Muitas vezes esquecemos de propósito.

Empurramos os pensamentos silenciosamente para debaixo do tapete, como se isso fosse mais fácil, mas não é. Ao embarcar naquele ônibus que fazia a linha bairro/centro, Sebastião, um brasileiro, (isso está me parecendo letra de música brega) cidadão, digno, contribuinte, não pedinte, guerreiro feroz do bom exemplo e da boa vontade, segue para mais um dia de trabalho.

Na sacola o de sempre. Um pedaço de pão fatiado de dois dias mais ou menos, uma banana e a passagem de ônibus para voltar pra casa. Sebastião sobe no ônibus com o pensamento longe. Esta preocupado com as contas, casa, filhas: Gisele de quinze, Verônica de quatorze e Solange de doze.

Para ele, homem de poucas letras, preocupava o fato das meninas serem observadas pelos rapazotes do bairro. Afinal, já estavam botando corpo e isso era algo que o deixava incomodado. O coletivo segue seu rumo, rua após rua, vencendo os metros, engolindo passageiro por passageiro, às vezes de um em um, outras vezes de monte, para daqui a pouco, poucos metros adiante cuspi-los para fora, sem mais nem menos.

O trajeto de Sebastião é longo. Até o trabalho cerca de 40 minutos. Ele aproveita o tempo para encostar a cabeça no vidro e esquecer dos problemas, esquecer da vida. Quando chega a uma quadra do ponto de descida, o motorista vira para ele e diz: acorda aí, Sebastião, chegamos. Sonolento, abre os olhos, ergue a cabeça, meio acordado, meio dormindo e fazendo uma força enorme para vencer a preguiça, levanta do banco e caminha até a porta. Essa maratona é feita seis vezes por semana, faltando apenas o domingo.
 - Ah! Não, domingo não. Eu não trabalho domingo não. Esquece! Eu não trabalho no domingo. Esbravejou Sebastião.
- Mas é um negotico de nada, rapá. Argumenta Sarará.

Sarará era um moleque da obra. Ninguém sabia ao certo a idade. O que se sabia era que não era flor que se cheire, como diz o ditado popular. E bem por isso, Sebastião estava ouriçado. O moleque queria que ele fosse entregar uma encomenda na Cachorro Sentado. Uma vila nos cafundós do Judas, lá onde o diabo perdeu as botas. E tinha que ser no domingo.

Segundo Sarará o dinheiro era bom. Mil real disse ele, na bucha. É só levar, deixar pro cara e vir embora, sem rolo. Sebastião pensou, coçou a cabeça, a testa. Não é sempre que se ganha mil reais assim. É muito fácil pra deixar passar. Que o garoto não é lá confiável, tudo bem, mas quem é? Nos dias de hoje os caras vendem a mãe, a irmã, dão até o rabo pra ganhar uma grana. E eu sou um cara de família, honesto, não devo nada pra ninguém. Chego, entrego e me mando. Com essa grana vou poder dar de entrada numa TV nova, daquelas tipo LCD, grandona, tela plana, som estéreo. Ah! Vai ser muito bom.

No horário combinado Sebastião aparece. O moleque esta esperando, com aquele sorriso maroto que deixa qualquer um cabreiro. Mas tudo bem, logo me livro disso, pensou.

Sebastião pega o pacote, chacoalha, cheira, tenta ouvir alguma coisa, nada. Nenhum barulho ou cheiro pra suspeitar. É apenas um pacote.

O endereço anotado num papel leva o homem para o meio da vila do Cachorro sentado. Uma área que antes era ocupada por moradores de rua e agora é refúgio de prostitutas, pilantras e traficantes. O coração de Sebastião esta nervoso e bate rápido.

Ele chega à frente do pequeno casebre, os sentidos a mil... Silêncio.

O pai da Gisele, Verônica e Solange, que atravessa a cidade de ônibus e trabalha honestamente de sol a sol, esta parado, olhar atônito, em um só pensamento: o que estou fazendo aqui? Eu vou matar aquele Sarará...  Novamente silêncio, murmúrios, passos, agora vozes, de novo silêncio...

Ao fim daquele domingo, Sebastião não voltou pra casa e no outro dia não pegará o ônibus da linha bairro/centro, nem será acordado pelo motorista, nem admirado pelos colegas de trabalho... Sebastião, na manhã de segunda-feira, será apenas mais uma vítima da violência urbana que assola milhares de brasileiros, engolidos pelo desamparo, desinteresse e falta de perspectiva desse país. País que é um continente emergente para os de fora, desigual e injusto para os de dentro. 

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